sexta-feira, 8 de abril de 2011

O HOMEM QUE ESTUDAVA IOGA - Norman Mailer

Uma das boas maneiras de treinar a escrita  é traduzir. Eu costumo, como exercício de linguagem e quem sabe de humildade, traduzir por conta própria, para depois guardar no armário,  textos de escritores de outras nacionalidades que admiro. Um deles é o extraordinário Norman Mailer. Dele estou traduzido nas (raras) horas vagas uma pequena novela, THE MAN WHO STUDIED IOGA, texto que me intriga desde que o li, provavelmente uns 40 anos atrás.. Hoje, nem seu bem o motivo, deu vontade de postar a tradução da abertura da novela. Me digam, Mr. Mailer é ou não é demais?


O HOMEM QUE ESTUDAVA IOGA
de Norman Mailer
trad. Antonio Carlos da Fontoura

Eu me apresentaria se não fosse inútil. Meu nome de ontem à noite não seria o mesmo de hoje à noite. Por enquanto, então, deixem-me apenas dizer que estou pensando em Sam Slovoda. Obrigatoriamente eu o estudo, Sam Slovoda, que não é nem ordinário nem extraordinário, não é jovem nem ainda é velho, não é alto nem é baixo. Ele está dormindo e é adequado descrevê-lo agora, pois como a maioria dos humanos Sam prefere dormir a não dormir. Ele é um suave e agradável senhor que acabou de completar quarenta anos. Se o topo da sua cabeça já revela uma pequena careca, em compensação Sam alimenta a vaidade de um bigode. Geralmente quando está acordado ele se comporta agradavelmente e, ao menos com estranhos, aparenta ser amistoso, tolerante e cordial. O fato é que, como a maior parte de nós, Sam está repleto de inveja, lotado de desprezo, é um fofoqueiro, um homem que fica satisfeito quando percebe que os outros são tão infelizes quanto ele e ainda assim - isso é o pior a ser dito - ele é um homem decente. Ele é melhor que a maioria. Ele preferiria ver um mundo mais igualitário, repudia preconceitos e privilégios, tenta não ferir ninguém, ele quer que gostem dele. Vou ainda mais longe. Ele tem uma virtude importante - não está satisfeito consigo mesmo e gostaria de ser melhor. Gostaria de se libertar da inveja, da embaraçosa necessidade de falar mal de seus amigos, gostaria de amar mais as pessoas, especificamente ele gostaria de amar sua esposa mais e amar suas duas filhas sem a atormentadora embora inevitável impressão de ter, por conta delas, aprisionado sua vida na teia poeirenta das responsabilidades domésticas e da batalha diária por mais grana.

Quantas vezes ele não se diz com desprezo que possui a crueldade de um homem gentil e fraco.

Deixem-me dizer que não desgosto de Sam Slovoda, apenas estou desapontado com ele. Já tentou coisas demais e nunca de coração inteiro. Queria ser um sério romancista e agora simplesmente se compraz com a ambição, gostaria de ocupar alguma posição significativa e agora é, talvez temporariamente, um atarefado roteirista de estórias em quadrinhos, quando jovem tentou ser um boêmio e em vez disto arrumou esposa e família. De seu apetite por uma variedade de experiências novas posso dizer que apenas é igualado por seu medo de novas pessoas e novas situações.

quinta-feira, 24 de março de 2011

NOSSA SENHORA DE COPACABANA


1954. Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Eu, o Bento e o Diniz tínhamos 14 anos. Estudávamos de manhã no Mello e Souza, na Rua Xavier da Silveira. A aula tinha acabado de acabar, devia ser meio dia. O Bento estava me levando para minha primeira trepada e o Diniz, que já tinha trepado com a Berkel, ia junto de testemunha.   

O Bento, mais conhecido como O Peru Galinha, era um cara legal que me dava aula de bolina em dia de cinema cheio no Roxy, também na Avenida Copacabana. O negócio era meio arriscado, mas se eu tivesse sangue frio podia me dar bem, com o cinema bem cheio muitas garotas não queriam se arriscar a procurar lugar na sala escura (pedir ajuda ao lanterninha era mico) e assistiam o filme de pé, encostadas na mureta do fundo da sala. 

A primeira parte da aula era percorrer o fundo do cinema até encontrar uma garota jeitosa vendo o filme encostada no balcão. A segunda parte era ir me chegando como quem não quer nada, para me posicionar bem perto da retaguarda da garota e assistir o filme dali, numa proximidade que dava emoção, mas não estabelecia o almejado contato físico.   

A terceira parte da aula era a a mais crítica, podendo até dar confusão se a garota fosse puritana ou estivesse acompanhada por alguma atenta tia, mãe ou prima mais velha, os casos mais comuns. Nesta fase meu sangue já estava fervendo, uma contradição porque para o próximo passo eu precisaria de muito sangue frio. Teria de fazer de conta que, atrás de mim na sala cheia, algum idiota forçando a barra para ver o filme mais de perto estava me empurrando contra a retaguarda da garota. 

O segredo era dar uma primeira encostada relutante e me afastar, reclamando do tal cara que estava me empurrando por trás. Como o dito cujo para todos os efeitos continuava querendo chegar mais perto da mureta, na próxima fase eu não conseguia resistir à pressão e era obrigado a me encostar de novo na garota, desta vez pedindo desculpa e reclamando que um mal-educado  estava me empurrando por  detrás.

Se a garota não reclamasse nem saísse de banda era hora de iniciar um sutil roça-roça. Neste momento único que era meu objetivo supremo eu tinha que estar preparado para uma de duas coisas que, segundo meu mestre, iriam fatalmente acontecer. Se a garota desse um chilique ou dissesse alguma grossura eu teria que sair de fininho, reclamando do cara que tinha me empurrado por trás e me forçado a um contato vergonhoso. 

Neste caso a garota raramente alimentava o barraco e eu simplesmente precisava me afastar para, com o constante monitoramento do mestre, encontrar outro alvo. Mas o coroamento da aula era quando a situação se encaminhava para a segunda hipótese. A garota gostava mesmo se acompanhada da tal amiga, mãe ou tia e me deixava ficar encostado na traseira dela, até ficar aflita com a safadeza, tirar o traseiro da reta e murmurar entredentes:  "vê se não empurra." 

A situação nunca progredia além desse estágio, pois o mestre já havia me ensinado a etiqueta destas situações. O limite permitido era me encostar e ficar por algum tempo, sem qualquer movimento além daquele, porque nem eu ia querer levar um flagra do lanterninha e ser chamado de tarado, nem a garota ia querer levar o flagra para ser chamada de galinha.

Isto dito dá para imaginar minha excitação naquela jornada pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, rumo ao meu primeiro encontro sexual de verdade. Faltava muito pouco para o consagrador momento de trepar na Berkel, segundo meu mestre uma alemãzinha depravada que tinha acabado de chegar do Sul, adorava  meninos como eu e por isso cobrava baratinho, dez pratas, que eu havia juntado dispensando duas ou três vezes meu lanche semanal de Cachorro Quente com Vaca Preta nas Lojas Americanas e guardando o dinheiro que recebia da minha mãe para este evento tradicional.

A caminho da Berkel, que haviam me dito que morava sozinha num apartamento no Posto 6, o Bento explicou que numa trepada o sujeito não podia perder mais que quatro quilos e que era perigoso não se pesar antes, porque se perdesse mais que isso poderia precisar de cuidados médicos para se recuperar. Foi assim que, acompanhado do Bento e do Diniz, entrei para me pesar na Farmácia Noite e Dia, ali na esquina da Miguel Lemos. 

Os dois me mostraram a balança e, muito sérios, ordenaram que eu me pesasse ou então não assumiriam o risco de me levar na Berkel. Eu estava achando  aquilo uma palhaçada, mas como era enorme minha ansiedade de encontrar a alemãzinha sacana, não pensei duas vezes e subi com os dois pés na balança, por sinal um modelo novo que eu não conhecia.

Depois de ver meu peso marcado pelo ponteirinho no mostrador eu estava quase descendo da balança quando meu professor de sacanagem insistiu: "Já? Fica mais um pouco. Trepa mais na Berkel." Foi então que eu vi, numa plaquinha ao lado do mostrador, a marca da balança alemã moderninha: Berkel. O Diniz teve um ataque descontrolado de riso, mas o Bento só apertou minha mão e me cumprimentou por enfim ter me iniciado sexualmente. 

Só não me enterrei imediatamente no chão da farmácia por falta de equipamento necessário para abrir uma cova do tamanho do meu vexame. O Peru Galinha ficou na dele, bons mestres não dão moleza, mas o Diniz aliviou a barra contando que tinha trepado na Berkel no dia anterior, que a próxima vítima ia ser o Gilson e me convidou para ir junto para também tirar sarro com ele. 

Foi assim que toda uma geração de alunos do Colégio Mello e Souza se iniciou sexualmente. Com aquela alemãzinha safada, a Berkel, na farmácia Noite e Dia, esquina da Miguel Lemos com a Nossa Senhora de Copacabana.

quarta-feira, 23 de março de 2011

NAPALM BLUES

NAPALM BLUES
new adventures in the skin trade
by Antonio Carlos da Fontoura


falei pro Careca que ia ser o primeiro santo pop e ele falou que antes eu ia ter que jogar muito napalm nas pessoas mas o que eu quero é isso mesmo ver a pele do povo arder porque eu acho que sem dor não tem salvação e o Careca falou que debaixo da primeira pele tem a segunda pele e enquanto o Quasímodo tiver forças para continuar na cozinha mexendo a sua velha panela o napalm sairá cheiroso e fresquinho com quando na primeira vez que ele foi feito e a gente num rompante de felicidade queria sair pelas ruas rindo e dançando e cantando e jogando napalm na pele de quem passasse porque os homens são todos irmãos mas o Careca falou que a gente tinha que escolher nossos inimigos e a partir daí a gente começou a ter critérios como a ordem alfabética e só saiu às ruas depois que eu disse por insistência do Careca o nome de um inimigo com a letra A


eu saía por uma porta enquanto o Careca entrava pela outra e ficamos rodando pelo apartamento como dois loucos até que cortei e fui à cozinha onde o Quasímodo mexia a panela enorme que ocupava as quatro bocas do fogão mas o Careca logo me achou e falou que estava na hora de novo e me perguntou o nome de um jogador de futebol com a letra A e eu disse Ademir da Guia mas ele falou que Ademir da Guia já morreu e que eu tinha de dizer um inimigo do povo vivo e eu ia dizer o Diamante Negro mas o Quasímodo avisou que o napalm já tava no ponto e que a mistura podia desandar se a gente demorasse então a gente foi pra rua eu comprei um saco de pipoca doce que fui comendo no carro e comi metade do saco e esvaziei o resto e o Quasímodo botou o napalm dentro e eu recobri com a pipoca e o carro chegou no Passeio Público com o Careca possesso porque ele sempre foi contra jogar napalm em qualquer um mas apesar de não ter dito nada pra mim tanto faz eu acho uma conversa fiada quando o Careca fala de inimigo do povo pois eu gosto de ver o napalm ardendo nas peles mas o Quasímodo já tinha descido do carro ele é uma alma pura mistura o napalm como ninguém e passa horas no fogão cantarolando e enquanto ele dava de comer aos animais eu travei uma rápida discussão com o Careca que mais uma vez acabou por me convencer que nenhuma missão podia ser desprovida de sentido e me perguntou o nome de um o Quasímodo voltou pro carro chorando e disse que queria ir embora logo dali o Careca concordou uma vez que nenhum inimigo do povo transitava no parque naquele momento eu continuei no banco traseiro e fiquei olhando pela janela e fiquei pensando como o napalm iguala a textura e a cor das peles e pensei que se o Careca fosse perguntar o nome do inimigo eu ia dizer todos os Fontes todos os Silveiras todos os Estrelas


O Careca continua com a mania do terror. Fez duas listas de personalidades indesejáveis do ponto de vista da Organização e veio me mostrar. Queria que eu discutisse as listas e sugerisse modificações. Eu não sabia o que dizer para ele, não queria decepcioná-lo, mas na verdade pouco me interessam os nomes, para mim tanto faz desde que haja um pouco de ação. É o que basta, não quero perder tempo com nomes nem o napalm quer saber o nome de ninguém. Mesmo assim disse para ele que a lista era boa mas incompleta, acrescentei ao acaso alguns nomes que tinha lido pela manhã no jornal, políticos, damas da sociedade, um jogador de futebol. O Careca recebeu bem minhas sugestões, entusiasmou-se particularmente com a lembrança do jogador de futebol, passou a planejar com Quasímodo uma ação fulminante dentro do estádio. Um craque em chamas, como ele falou, mas não me agradou muito a idéia pois como sempre eu ficaria com a parte mais arriscada, o arremesso da bomba, enquanto eles se ocupariam com os detalhes da aproximação e da fuga. O Quasímodo foi para o fogão preparar uma boa panelada da mistura incendiária e enquanto o Careca via e revia sua preciosa lista fui para a janela me divertir. Passa muita gente na calçada lá embaixo e gosto de imaginar que são todos meus inimigos. Não jogo napalm neles porque o Careca me daria uma bronca, o Quasímodo tem sua capacidade de produção limitada por um vagabundo fogão a gás de quatro bocas com quase todos os bicos obstruídos. O resultado é que só posso atacar quem realmente eles acham que é inimigo mas jogo outras coisas neles, principalmente sacos de leite usados que encho de mijo. Nunca erro, eles olham para cima putos da vida mão são mais de três mil janelas e sei me esconder muito bem. A mistura fica pronta e saímos para a rua, no carro eu vou no banco traseiro, pretendo que é um carro de patrulha mas logo tenho que pensar noutra coisa pois o Careca diz que não suporta um maluco de merda guinchando no ouvido dele. Compro um sorvete de creme no estádio, vamos para a geral, preciso assistir o jogo de perto. Por um desses azares o sujeito que eu li o nome no jornal não vai jogar, parece que está contundido, não sabe do que está escapando. O Careca me pergunta se identifico algum outro inimigo, ele agora está limitado por suas lista, é no que dá, perdeu a liberdade de escolha fora delas. Sei que agora depende de mim termos alguma ação nessa tarde escrota, mas também quero fingir que reconheço meus inimigos, se apontar algum outro nome ao acaso eles vão perceber que sou um irresponsável. Digo que não e ficamos tranquilamente assistindo ao futebol.


O Careca se cansou dessa coisa toda. Matar, matar, matar – sem alegria. A vida não pode ser só isso. Ele não teve coragem de me dizer, mas eu percebi nos seus olhos quando discutíamos a nova missão. Disse para ele que Deus estava do nosso lado, que cada morte construía um degrau na subida da libertação. Mas eu quero me libertar do que me atormenta e me impede de mandar tudo para o inferno e abraçar o Careca e chorar junto com ele porque tudo é tão ruim. Mas sou durão e anuncio que o Secretariado se reunirá pela última vez e que em chamas será consumido assim que o Quasímodo terminar o preparo da mistura sinistra. A panela sobre o fogão regurgita a sua carga diabólica e que sei eu, mataremos apenas postos e posições, os homens são acidentes estranhos em nossa luta. Tudo isso em que não acredito dá sentido à minha existência e me impede de enlouquecer. Só o Quasímodo é inocente porque nada sabe, eu já pensei em tirá-lo de sua certeza louca que o redime de qualquer mal, mas ele é a sua certeza, eliminá-lo seria a única maneira. Logo vamos em nossa viagem e o carro esconde além de suas engrenagens a carga alegre do napalm que só existe para encontrar as peles. O Careca nos conduz e pouco falta para novas mortes se somarem ao meu galardão de glórias oh pátria amada meu sonho minha dor meu amor minha loucura quantos incêndios ainda vou atear em seus olhos antes da despedida?


eu acho que todo mundo tem de morrer pra nascer de novo e que a primeira pele tem que queimar pra que a segunda pele possa aparecer embaixo mas quando fui propor ao Careca de encher de napalm o reservatório de água da cidade pra que todos os habitantes na hora do banho que eles tomam quando voltam do trabalho pudessem sentir ao mesmo tempo a deliciosa libertação de não ter mais pele o Careca se mostrou contra porque disse que era uma utopia supor que a iluminação pudesse vir ao mesmo tempo para todos e que a nossa missão era escolher quem já estava pronto e era certo que ao se incendiar a pele de um homem em posição de destaque os outros homens saberiam apreciar o acontecido e imaginar que mais cedo ou mais tarde suas peles também se desfariam em chamas


o Careca fica puto porque quando eu fico muito louco eu não digo coisa com coisa e não sei mais de nada e abro mão do controle mas eu acho que o Careca fica puto porque ele é boi de cu branco e se caga de medo que de repente não tenha mais nenhum peso nem medida e que ele também não possa mais dizer se tem certo e errado e longe e perto e encima e embaixo e cedo e tarde e devagar e depressa e dentro e fora e que eu e ele e o Quasímodo e o napalm e  a árvore e a montanha e o mar e a pele do governador seja tudo uma continuação só


Eu tomei um milk-shake de baunilha na lanchonete debaixo do edifício. Aí o Careca e o Quasímodo chegaram e a gente subiu pro terceiro andar. Eu disse pra empregada que era da Legião da Boa Vontade. Ela abriu a porta e foi levando um pé na boca do estômago. Os Estrelas tinham acabado de jantar e estavam vendo televisão na sala. Eu me amarro em televisão e pedi licença e sentei no sofá ao lado da Estrelona. O Careca pegou um pincel piloto e escreveu na parede Quem Tem Cu Tem Medo. O Estrelão era o mais bundão e não despregava o olho da televisão. A Estrelinha ficou tesuda e se ligou no Quasímodo que tinha enfiado a mão debaixo da saia dela. O Estrelinho quis ficar puto mas eu passei a mão na bunda dele e mandei ele se segurar. A Estrelona perguntou se o Careca não queria sentar. Eu pedi pra mudar o canal que eu queria ver a resenha esportiva. O Careca estava desarranjado e mandou ver no arranjo floral e no tapete persa e na perna do Estrelão. A Estrelinha gemia de gozo porque o Quasímodo já estava metendo nela. A Estrelona perguntou se a gente não aceitava um licor. O Estrelinho desmunhecou e ficou louquete e pediu pro Quasímodo poupar a irmã e meter nele. Eu terminei de ver a resenha esportiva e dei um bico no cinescópio. O Estrelão continuou de olho pregado onde era a televisão. O Careca lembrou que a gente tinha uma missão a cumprir. Eu fui pro meio da sala e perguntei quem era o Ronaldo Estrela. O Estrelão apontou pro Estrelinho sem despregar o olho de onde era a televisão. O Quasímodo estava agora metendo na Estrelona. A Estrelinha estava sangrando pra valer mas em torno de cabeça dela tinha uma aura iluminada. O Careca arrastou o Estrelinho pelo chão até onde eu estava. Eu mandei o Estrelinho se levantar e tirar a roupa toda. A Estrelona não terminava nunca de gozar e o Quasímodo teve que dar um pontapé nos cornos dela. O Estrelão se tocou e tirou a roupa do Estrelinho que tremia muito. O Quasímodo trouxe o napalm dentro de uma garrafa de Coca Cola família. Em torno da cabeça da Estrelona também pintou uma aura iluminada. Eu falei brevemente e disse que o Estrelinho ia passar dessa para uma melhor. A Estrelinha se abraçou na Estrelona e juntas cantaram graças ao Senhor. Eu dei a garrafa de Coca Cola família pro Estrelinho beber.  O Estrelão teve que dar na boca porque ele tremia muito e não conseguia segurar a garrafa. O Careca não deixou ele beber tudo porque não tinha mais napalm e nunca se sabe quem vai se encontrar na rua. O Quasímodo com um lápis cera desenhou várias setas amarelas na pele do Estrelinho indicando o caminho do napalm. O Careca falou que tava na hora de ir embora. Eu pedi desculpas pela quebra da rotina e apertei a mão do Estrelão que foi nos levar até a porta.


não tem nada melhor do que passar as tardes aqui no meu canto vendo o Quasímodo mexer a panela e sentindo o cheiro delicioso do napalm fresquinho no pé do fogão no calor da tarde aprendendo tudo que há para aprender simplesmente observando Quasímodo atento e amoroso aqui e agora mexendo sua panela não tem nada melhor que o cheiro delicioso do napalm fresquinho que logo eu vou botar  nas portarias elevadores e corredores em todos os andares de todos os edifícios nos supermercados pontos de ônibus escritórios milk-shakes de baunilha doceiras churrascarias estádios pois antes que a cidade me mate eu vou matar a cidade para que todas as peles voltem a ser a única pele para que todos os homens voltem a ser o único homem para que tudo possa começar mais outra vez


aqui é tudo muito difícil a repercussão é pequena a sociedade é provinciana as mensagens não são compreendidas às vezes eu desanimo quero deixar o caminho largar tudo ser feliz abandonar os homens à cegueira mas tenho coração de santo portador de luz choro de noite no escuro na cama lamento que esteja tão longe o dia mas não desisto desço para a rua me misturo na multidão tenho napalm no bolso logo uma pele vai arder em chamas não se apeguem às suas peles não tenham medo saibam ler os significados ocultos abram os sentidos para a ação regeneradora do fogo que consome o vazio e a vaidade e a cobiça  e a intolerância e dá fim ao desespero de suas formas carnais oprimidas oh manifestações da luz única que na aurora do dia outra vez reinará como na origem


Estávamos reunidos em volta da mesa, eu, o Careca e o Quasímodo, empenhados na tarefa de ampliar nossas listas de personalidades cuja libertação seria desejável. É um trabalho cansativo porque procuramos sempre tornar mais aberto o sistema de escolha, nos utilizando de catálogos telefônicos, resultados de exames vestibulares, editais de convocação, relações de acertadores em loterias, um material extenso e variado que tem como único ponto comum a faculdade de portar o nome do inimigo impresso. Nestas ocasiões é a mim que cabe a decisão de anotar ou não nas listas os nomes que Careca e Quasímodo vão lendo ao acaso no material que temos em mãos, já que todos estão acordes que possuo uma espécie de sexto sentido que me orienta nesta função. Havia reparado que Careca e Quasímodo tornavam-se inquietos, uma vez que eu ainda não anotara sequer um nome dentre as dezenas dos que eles enunciavam, quando fui surpreendido pela leitura do nome de Ezequiel Fontes. Está além das minhas possibilidades reproduzir aqui a emoção que a leitura de tal nome desencadeou em mim, basta dizer que não consegui enquadrá-lo em qualquer das listas que na ocasião se dispunham em leque à minha frente. Somos muito rigorosos na classificação dos eleitos, há todo um escalão de prioridades sensíveis das quais me utilizo para o registro dos nomes selecionados na categoria adequada. Mas era evidente que Ezequiel Fontes não se enquadrava em nenhuma de nossas frágeis tentativas de sistematização,  a aura que em torno de sua pele seguramente se irradiava suplantava de longe a capacidade humana de avaliá-la. Inaugurei-o imediatamente como prioridade alfa e logo procedemos à rotina de levantamento de dados sobre a sua pessoa aparente. Não foi difícil descobrir que o vestibulando Ezequiel Fontes, quadragésima terceira nota na prova de Biologia, compareceria novamente ao local dos exames daqui a dois dias, para ser submetido a um novo teste. Aproveitei o intervalo de tempo disponível para esquematizar a ação com Careca, enquanto Quasímodo se esmerou na cozinha em preparar uma panelada especialmente concentrada da mistura incendiária. Fomos os primeiros a chegar ao estádio no dia do exame. Deixamos o carro perto do portão principal e agimos conforme o combinado. Quasímodo se localizou em um ponto chave que lhe facilitaria o controle da retirada, enquanto eu e Careca procuramos ficar próximos à cabine de rádio e passamos a aguardar o momento oportuno. Assim que uma sirene avisou o início da prova eu invadi a cabine de rádio junto com o Careca. Não foi difícil dominar o operador assustado e logo nos altofalantes a voz de Careca anunciava que Ezequiel Fontes deveria se dirigir imediatamente ao saguão central do estádio para atender a um assunto de seu interesse. O local estava deserto e fiquei esperando que ele aparecesse. Mesmo que ali houvessem milhares de pessoas eu saberia reconhecê-lo quando o visse. Devia haver um traço qualquer na forma humana de Ezequiel Fontes revelando o ocultado. Quando um garoto frágil e lourinho surgiu de uma entrada lateral e me perguntou se lá era o saguão principal concluí que só podia ser ele e logo arremessei o napalm. A mistura era muito concentrada e sua pele ardeu rapidamente, consumindo o corpo por inteiro. Chegamos ao carro com facilidade e nos afastamos do estádio sem contratempos. Para mim era como se tudo tivesse perdido a razão de ser, agora que o mal em seu estado mais puro se volatilizara pelo fogo. Mas é propriedade do mal reagrupar-se e ressurgir mesmo após o mais duro revés e, seguramente, neste mesmo momento ele se depositava incólume sobre alguma outra pele desprotegida. Caberia a nós localizá-la.


meu reino não é desse mundo nem quero saber pouco me importa o primeiro corpo o mundo é ilusão não me engano com os diferentes rostos ando na rua o mesmo rosto se esconde atrás das máscaras de pele um rosto único assim como eucarecaquasímodo um rosto só assim como santíssimatrindade assim como todas as manifestações da energia única ilusoriamente dividida em formas estanques ilusões que se chamam eu se imaginam separadas do resto ilusões aprisionadas nas cascas de pele estreitas egoístas cegas é preciso ampliar o círculo unir os pontos preencher o vazio voltar à simplicidade do todo


oh napalm sol secreto no meu bolso oh amálgama da união denominador comum ponte entre as peles o sol estamos chegando no sol estrela da origem meta e destino luz do princípio e do fim


SOMOS SOL E AO SOL VOLTAREMOS


FIM


sábado, 12 de fevereiro de 2011

VIDA QUE SEGUE

Esse blog é muito esporádico. Deve ser por isso que só tenho oito seguidores. Puxa, gente, me segue. Meu filho de 20 anos tem uma camiseta preta  onde está escrito: "genius by birth, slacker by choice." Eu acho que também ando meio assim, preguiçoso. Também não é mole ser um triplo hifenado (ou hifenizado?) produtor-roteirista-diretor. Três hífens é um pouco demais, não é não? Ainda mais que eu levo no capricho, mais ou menos não conjugo. Engraçado, acho que eu tenho alguns problemas de identidade. Quando moleque queria ser músico de jazz, carregava a bateria do João Palma de lá pra cá, ficava horas ouvindo o Kumbuka no piano e o Henrique Grosso no baixo, virava as noites no escuro no chão da sala do Robert Celérier ouvindo o Miles ou Monk que ele, comissário de bordo da Air France, tinha acabado de trazer de Paris, domingo de tarde era jazz com Pernod e Dexamil no Little Club. Mas músico era um sonho impossível que eu só sonhava na frente do espelho fazendo solos incríveis junto com o Coltrane. Minha segunda identidade sonhada era de romancista, lia tudo que me caía nos olhos, de Camus a Sartre a Mailer a Steenbeck a Faulkner a Scheckley a Asimov a dos Passos, claro que eu ia ser um escritor,mas não tinha nenhuma Escola Nacional de Romancistas então fiz vestibular para Geologia, depois de quatro anos fiquei geólogo e fui escrever teatro de rua no Centro Popular de Cultura. Tudo a ver, não é? Aí um dia li no jornal que o Arne estava chegando no Rio para ensinar técnica de cinema e fui parar lá, com o Salvá, o Saldanha, o Domingos, o Jabor, o Escorel, um bando de gente que eu nem mais lembro o nome e de repente eu era quase um cineasta, até que li no jornal uma reportagem sobre um velho sambista que tinha atelier num cortiço e pintava quadros de um mundo que só existia nas lembranças dele, daí fiz o Heitor, comecei a curtir arte, sonhar em se pintor nem chance, fiquei amigo do Roberto, do Antonio e do Rubens e fizemos Ver Ouvir e de repente foi um susto, ficou bom demais. O Jodorowsky diz que todo filme é um acidente, Ver Ouvir foi um acidente feliz.  Aí vieram outros filmes, Scliar, Gal, Mutantes, Copacabanas e Rainhas, Capoeiras e Espelhos, de repente ficou chato, todo filme era um novo começo e eu cansado de peças únicas resolvi traabalhar em série, ter patrão e fui para a televisão. Televisão é legal, é que nem servir o exército, deveria ser obrigatório para deixar de se sentir especial e ver que é mais um fabricante de sons e imagens. Bem, também cansou e back to the movies, um filme sobre o Zico, outro sobre meu filho Daniel, que não é o Daniel Filho, outro sobre um gatão até que, de repente,  lá do céu ou de algum universo paralelo destes que os quânticos dizem que pululam por aí, o Renato me aponta o dedo e diz vai ser você e eu, que nunca tinha comprado um disco da Legião Urbana, estou aqui aprendendo a amar o Russo para fazer um filme tão bonito quanto ele merece. Vida que segue. Quem mandou ter três hífens?

sábado, 22 de janeiro de 2011

O CINEMA AGRADECE

Ontem resolvi conhecer o complexo Cinépolis  Lagoon. Adorei as salas e o entorno. 

Quanto ao filme, antes de sair consultei os bonequinhos do Globo. Quando o boneco bate palmas em pé não tem  o que me faça assistir, já sei que é o filme é chato,"artístico", pretensioso e maneirista e vou detestar. Mas acontece que o Biutiful  estava com o bonequinho sentado, sem aplaudir, o que me deu alguma esperança do filme me agradar.

Ledo engano – turma do bonequinho, revejam, o filme merecia um bonequinho aplaudindo aos pulos!
Um cara quase cinquentão vai morrer daqui a dois meses com um câncer na próstata em metástase. Ele urina sangue,explora africanos e chineses (muito multicultural, né diretor), a mulher o ama mas só da para o cunhado, vão vender o túmulo do pai para levantar algum, ele mora com dois filhos adolescentse num apartamento funéreo, serve de almoço para eles algo que lembra ração pra cachorro (o Inarritu se amarra em cachorro desde o filme de estréia, só que naquela época ele tinha um ótimo roteirista, dá até para desconfiar  que o talento era mesmo do Arriaga).

Não posso comentar mais sobre o filme por que para me proteger de tanta desgraça adormeci lá pelos 60 minutos de projeção. Não sei como o filme acabou, mas duma coisa tenho certeza, não acabou bem.

De qualquer modo dá para perceber que o senhor Inarritu é um curtidor profissional da desgraça alheia. Não da dele, algo me diz que mora em algum suntuoso penthouse por aí.

Depressa, Inarritu e Arriaga, façam logo as pazes, o cinema agradece.